Segundo
a teologia tradicional, o inferno é um “lugar” de suplício, criado por Deus
para a punição dos pecadores e... dos “hereges”, à semelhança de certas prisões
e masmorras que os governos humanos instituíram no passado, para castigo de
malfeitores. Com uma diferença: destas, ainda era possível um livramento, por
fuga ou ato de clemência da autoridade coativa, ao passo que no averno, quantos
lá entram, é para não saírem jamais.
“Lasciate ogni speranza, voi,
ch’entrate”,[1] tal o dístico de seu ígneo umbral, conforme nos revela o
famoso Dante em sua obra-prima.
É de se notar que, de alguns séculos
a esta parte, têm caído, um por um, todos os despotismos, e, com eles, todas as
bastilhas e sistemas de tortura que encheram de horror a História da
humanidade.
(...) Até mesmo os prisioneiros de guerra são tratados, hoje, com espírito de humanidade, provando, tudo isso, que o mundo progride, lenta mais ininterruptamente, e que dias cada vez melhores hão-de vir para todos os povos.
Todavia, que blasfêmia! – enquanto
os homens corrigem, melhoram, aperfeiçoam suas instituições penais, diz-se que
Deus permanece insensível e indiferente ao sofrimento das almas condenadas ao
inferno, não lhe fazendo mossa que continuem a arder nos tachos de breu
fervente, “peromnia saecula saeculorum”![2]
O mal que os
propagadores dessa doutrina monstruosa causam às massas humanas é incalculável,
pois, não raro, os que repelem, com justa revolta, os suplícios infernais,
englobam no mesmo repúdio Aquele a quem os atribuem, caindo na irreligiosidade
e no ateísmo.
Mas, poder-se-ia perguntar: então o
inferno não existe?
Existe, sim. Se há tanta gente a
exclamar – “Minha vida é um inferno!” – é porque ele existe de fato. Não,
porém, como um “lugar”, mas (tal que o céu) como um “estado” de consciência.
Em qualquer ponto do universo, aqui,
ali, ou alhures, quem sinta o inferno dentro de si, pode dizer que está no
inferno.
Muitos baseados na teologia
pseudo-cristã que lhes foi inculcada, creem ser Deus quem deseje ou mesmo
propicie todas as dores físicas e morais que nos “infernizam” a existência,
como se Ele fosse um monstro que se comprazesse com o sofrimento de suas
criaturas.
Em verdade, porém quem faz o nosso
inferno (ou nosso céu) somos nós próprios, segundo procedamos em contraposição
aos mandamentos divinos, ou em harmonia com eles.
Não é assim, poderão objetar-nos,
pois assistimos, diariamente, ao nascimento de muitas crianças marcadas por
taras [3], deformidades e muitas lesões que as farão sofrer por toda a existência,
sem que lhes possa ser imputada qualquer culpa por essa situação.
Redarguimos: A quem, pois, atribuí-la?
Aos ancestrais, por serem ou terem sido alcoólatras, sifilíticos, etc? Mas,
nesse caso, baseado em que razões escolheria Deus determinadas almas para animar
esses corpos, condenando-as previamente a uma vida miserável, enquanto
reservaria a outras melhor sorte? Esse arbítrio na distribuição de graças e
desgraças não se coaduna com sua equanimidade.
Quem
entra nesse mundo privado de seus meios de percepção e de expressão, ou com
outras deficiências psicossomáticas, é porque, via de regra, em existência(s)
anterior(s), abusou dos recursos e faculdades de que dispôs, comprometendo-se
seriamente perante a Lei.
Sim porque ninguém sofre sem merecer,
eis que não há falhas nem enganos na Justiça Divina.
Sendo o inferno, portanto, criação
nossa e não de Deus, sua abolição também depende exclusivamente de nós, de
nosso desejo sincero e espontâneo de deixar o caminho do mal para trilhar o do
bem.
Revela frisar, entretanto, que essa
transição não se opera pura e simplesmente pelo arrependimento. Este é
indispensável, é o primeiro passo, mas não basta. Todo dano ou padecimento que
houvermos infligido ao próximo e até os males que houvermos causado, pelos
excessos e intemperanças, têm que ser resgatados, através de expiações
adequadas, porque como diz o Evangelho: “aquilo que o homem semear, isso mesmo
há-de colher”.
Não se confie, igualmente no
privilegio de pertencer a esta ou àquela denominação religiosa, nem na eficácia
de certos expedientes oferecidos pelo poder eclesiástico, como meio seguro de
fugir ao inferno.
O único jeito é seguir as pegadas
daquele que havendo alcançado a perfeição, pôde dizer: “Eu sou o caminho, a
verdade e a vida; ninguém vai ao Pai senão por mim.”
Rodolfo
Calligaris
Páginas
de Espiritismo Cristão; capítulo 24 – páginas 79 a 82 – 3ª ed.- FEB.
[1] Locução
italiana que significa “deixai toda a esperança, ó vós que entrais”
[2] “Para
todo o sempre; eternamente”.
[3] A
palavra “Tara” tem muitos significados, no texto em tela pode significar:
- Defeito físico ou psíquico de natureza
hereditária
- Desequilíbrio mental ou psicológico
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