Dentre os vários temas contraditórios contidos nesses livros mediúnicos, o da origem dos humanos e a sua filiação corporal, proveniente das formas primitivas descritas no primeiro volume da obra [1] serão o objeto de estudo deste artigo.
De acordo com os espíritos que ditaram o livro, as primeiras encarnações humanas deram-se em corpos grosseiros, semelhantes a massas de carne alongada, comparados por eles próprios a invertebrados como vermes e lesmas [2].
Esses organismos rastejantes denominados de “substâncias humanas” se desenvolveram e modificaram-se com o passar do tempo para a forma humana.
“(…) encarnam em mundos primitivos, ainda virgens do aparecimento do homem, mas preparados e prontos para essas encarnações”. – “Encarnam em substâncias humanas, às quais não se pode dar propriamente o nome de corpos*.” [3] – “São corpos rudimentares. O homem aporta a essas terras no estado de esboço, como tudo que se forma nas terras primitivas.” – “As gerações se sucedem desenvolvendo-se.” – “Mal se arrastando em seus grosseiros invólucros (…).” – “Seus únicos instintos são os da alimentação e os da reprodução”. – “As gerações se sucedem desenvolvendo-se.” – “As formas se vão alongando e tornando aptas a prover às suas necessidades que se multiplicam.” [4] – “Não poderíamos compará-los melhor do que a criptógamos carnudos [5]. Podeis formar ideia da criação humana, estudando essas larvas informes que vegetam em certas plantas, particularmente nos lírios. São massa, quase inerte, de matérias moles e pouco agregadas, que rasteja, ou antes, desliza, tendo os membros, por assim dizer, em estado latente.” [6] – “Desde o estado de encarnação primitiva até a forma humana, não há outra coisa senão um tipo único em gérmen, a desenvolver-se. Tipo único, mas que se modifica, à medida que o seu desenvolvimento se opera, de conformidade com os meios em que se vai encontrando.” [7]
Quando afirmam por tipo único, se conclui que o gênero humano, segundo eles, progrediu numa mesma linhagem desde o estado de verme até adquirir a forma humana, sofrendo modificações segundo o meio ambiente. Isso sugere que a morfologia humana não evoluiu biologicamente do reino animal, dos primatas, mas, se desenvolveu de forma independente. Ideia que fica ainda mais clara com as afirmações posteriores:
“Efetivamente o que se dá com a origem do tipo humano, que provém do limo diluído e fecundado, se verifica também com o principio das primeiras plantas, dos primeiros animais.” [7] – “Não obstante ser o desenvolvimento material das espécies animais, no momento da encarnação humana primitiva, superior ao do espírito humanizado, sob o ponto de vista do invólucro.” [7] – “Chegado, no seu desenvolvimento, ao período em que os carnívoros o atacam para devorá-lo, o homem já não se acha mais sem defesa e sem meios de fugir.” [8]
Das palavras acima se infere o seguinte: assim como o corpo humano provém diretamente do limo diluído e fecundado (lama), o mesmo fato ocorreu com as plantas e animais. Todavia, o “tipo humano” é único desde a origem, embora saído do mesmo material básico que foi o barro fecundo, por isso proclamam: “Eis, oh! homem a tua origem, o teu ponto de partida… a primitiva encarnação humana.” [6]
Dessa maneira, o texto sugere que quando as substâncias humanas surgiram na terra, os animais já eram fisicamente superiores, pois se locomoviam, já tinham membros; enquanto que as larvas humanas se arrastavam pelo solo. A situação dessas substâncias moles somente melhora quando desenvolvem meios para fugir de seus predadores.
A ideia de que humanos e animais evoluíram de estruturas simples concorda com a biologia evolutiva atual. Todavia, a proposta Roustainguista está em desacordo gritante com a ciência, tornando a tese das substâncias humanas inaceitável e absurda.
Logicamente que os seres humanos são efetivamente únicos em relação aos demais reinos da natureza. Contudo, a ciência vem demonstrando de modo inequívoco que todos os seres vivos do planeta evoluíram de uma origem orgânica comum. O Homem resulta de uma ramificação dessa ancestralidade orgânica; pertencendo ao reino animal, à classe dos mamíferos e a ordem dos primatas, partilhando com esses animais muitas semelhanças tanto físicas como comportamentais. Logo, contrariando o tipo único de Roustaing.
Entretanto, a crença numa criação especial para a humanidade ainda era muito forte em meados do século retrasado, devido à influência do criacionismo religioso, enquanto o evolucionismo ainda dava seus passos iniciais. Por isso, é sugestiva a referência que a obra Roustainguista faz ao limo fecundo, sinônimo de argila e ao tipo único, remontando à mitologia do Gênesis e a criação do primeiro homem diretamente do solo.
Em tal caso, será que as formas orgânicas moles e alongadas das substâncias humanas, qual massa de modelar, não seriam uma alusão à forma argilosa inicial de Adão? Estavam os espíritos Roustainguistas pretendendo explicar como a humanidade foi criada tomando Adão como referencial, na tentativa de encaixar o modelo bíblico da criação, numa linguagem atrativa, de modo a ser aceito no meio intelectual do século XIX? Parece-me que sim, visto que a proposta do Roustainguismo parece querer introduzir um misticismo e uma religiosidade próxima do Catolicismo dentro das fileiras espiritistas. O que pode ser constatado por vários outros textos.
O homem, progredindo a partir de um tipo único desde que saiu o limo fecundo, corroborava com a visão religioso-mitológica. Mesmo após a publicação de “A Origem das Espécies” de Charles Darwin em 1858, a maioria dos homens de ciência daquela época partilhava da visão religiosa tradicional sobre a procedência do homem e dos animais, apenas a proposta de um parentesco corporal lhes causava verdadeira repugnância.
Assim sendo, uma explicação alternativa descrevendo como o homem saiu do barro, utilizando um palavreado próximo às ideias que estavam surgindo naquele momento, atrairia a atenção, principalmente dos espíritas recém-saídos das religiões tradicionais, receptivos a uma criação especial do gênero humano.
Portanto, tendo em vista o que foi observado nos trechos retirados da obra de Roustaing relacionados ao assunto, se é levado a acolher a opinião dos diversos pensadores espíritas quanto à produção Roustainguista: Que os espíritos que ditaram esses livros eram de uma falange ainda apegada ao dogmatismo bíblico, que copiaram a codificação Kardequiana e acrescentaram ideias próprias com o intuito de “catolicizar” o Espiritismo.
Jefferson Moura de Lemos
Referências:
[1] ROUSTAING, J.B. “Os Quatro Evangelhos” – vol. I. Rio de Janeiro-RJ, FEB. 8ª edição, 1994.
[2] Animais de corpo mole, moluscos.
(latim molluscus, moles).
* os grifos são nossos.
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