“Logo se reconhecerá que o Espiritismo ressalta a cada passo do próprio texto das Escrituras Sagradas. Os Espíritos não vêm, pois, destruir a religião, como alguns o pretendem, mas, ao contrário, vêm confirmá-la, sancioná-la por provas irrecusáveis.” (O Livro dos Espíritos, questão 1010)

sexta-feira, 28 de abril de 2023

A ORIGEM DO HOMEM SEGUNDO ROUSTAING


Os escritos organizados por J.B. Roustaing (1866) intitulados de “Os Quatro Evangelhos, Revelação da Revelação”, obtidos através da médium Émilie Collignon, trouxeram uma série de controvérsias dentro da seara espírita.

Dentre os vários temas contraditórios contidos nesses livros mediúnicos, o da origem dos humanos e a sua filiação corporal, proveniente das formas primitivas descritas no primeiro volume da obra [1] serão o objeto de estudo deste artigo.

De acordo com os espíritos que ditaram o livro, as primeiras encarnações humanas deram-se em corpos grosseiros, semelhantes a massas de carne alongada, comparados por eles próprios a invertebrados como vermes e lesmas [2].

Esses organismos rastejantes denominados de “substâncias humanas” se desenvolveram  e modificaram-se com o passar do tempo para a forma humana.

“(…) encarnam em mundos primitivos, ainda virgens do aparecimento do homem, mas preparados e prontos para essas encarnações”. – “Encarnam em substâncias humanas, às quais não se pode dar propriamente o nome de corpos*.” [3] – “São corpos rudimentares. O homem aporta a essas terras no estado de esboço, como tudo que se forma nas terras primitivas.” – “As gerações se sucedem desenvolvendo-se.” – Mal se arrastando em seus grosseiros invólucros (…).” – “Seus únicos instintos são os da alimentação e os da reprodução”. – “As gerações se sucedem desenvolvendo-se.” – “As formas se vão alongando e tornando aptas a prover às suas necessidades que se multiplicam.” [4] – “Não poderíamos compará-los melhor do que a criptógamos carnudos [5]. Podeis formar ideia da criação humana, estudando essas larvas informes que vegetam em certas plantas, particularmente nos lírios. São massa, quase inerte, de matérias moles e pouco agregadas, que rasteja, ou antes, desliza, tendo os membros, por assim dizer, em estado latente.” [6] –  “Desde o estado de encarnação primitiva até a forma humana, não há outra coisa senão um tipo único em gérmen, a desenvolver-se. Tipo único, mas que se modifica, à medida que o seu desenvolvimento se opera, de conformidade com os meios em que se vai encontrando.” [7]

Quando afirmam por tipo único, se conclui que o gênero humano, segundo eles, progrediu numa mesma linhagem desde o estado de verme até adquirir a forma humana, sofrendo modificações segundo o meio ambiente. Isso sugere que a morfologia humana não evoluiu biologicamente do reino animal, dos primatas, mas, se desenvolveu de forma independente. Ideia que fica ainda mais clara com as afirmações posteriores:

 “Efetivamente o que se dá com a origem do tipo humano, que provém do limo diluído e fecundado, se verifica também com o principio das primeiras plantas, dos primeiros animais.” [7] – Não obstante ser o desenvolvimento material das espécies animais, no momento da encarnação humana primitiva, superior ao do espírito humanizado, sob o ponto de vista do invólucro.” [7] – “Chegado, no seu desenvolvimento, ao período em que os carnívoros o atacam para devorá-lo, o homem já não se acha mais sem defesa e sem meios de fugir.” [8]

Das palavras acima se infere o seguinte: assim como o corpo humano provém diretamente do limo diluído e fecundado (lama), o mesmo fato ocorreu com as plantas e animais. Todavia, o “tipo humano” é único desde a origem, embora saído do mesmo material básico que foi o barro fecundo, por isso proclamam: “Eis, oh! homem a tua origem, o teu ponto de partida… a primitiva encarnação humana.” [6]

Dessa maneira, o texto sugere que quando as substâncias humanas surgiram na terra, os animais já eram fisicamente superiores, pois se locomoviam, já tinham membros; enquanto que as larvas humanas se arrastavam pelo solo. A situação dessas substâncias moles somente melhora quando desenvolvem meios para fugir de seus predadores.

A ideia de que humanos e animais evoluíram de estruturas simples concorda com a biologia evolutiva atual. Todavia, a proposta Roustainguista está em desacordo gritante com a ciência, tornando a tese das substâncias humanas inaceitável e absurda.

Logicamente que os seres humanos são efetivamente únicos em relação aos demais reinos da natureza. Contudo, a ciência vem demonstrando de modo inequívoco que todos os seres vivos do planeta evoluíram de uma origem orgânica comum. O Homem resulta de uma ramificação dessa ancestralidade orgânica; pertencendo ao reino animal, à classe dos mamíferos e a ordem dos primatas, partilhando com esses animais muitas semelhanças tanto físicas como comportamentais. Logo, contrariando o tipo único de Roustaing.

Entretanto, a crença numa criação especial para a humanidade ainda era muito forte em meados do século retrasado, devido à influência do criacionismo religioso, enquanto o evolucionismo ainda dava seus passos iniciais. Por isso, é sugestiva a referência que a obra Roustainguista faz ao limo fecundo, sinônimo de argila e ao tipo único, remontando à mitologia do Gênesis e a criação do primeiro homem diretamente do solo.

Em tal caso, será que as formas orgânicas moles e alongadas das substâncias humanas, qual massa de modelar, não seriam uma alusão à forma argilosa inicial de Adão? Estavam os espíritos Roustainguistas pretendendo explicar como a humanidade foi criada tomando Adão como referencial, na tentativa de encaixar o modelo bíblico da criação, numa linguagem atrativa, de modo a ser aceito no meio intelectual do século XIX? Parece-me que sim, visto que a proposta do Roustainguismo parece querer introduzir um misticismo e uma religiosidade próxima do  Catolicismo dentro das fileiras espiritistas. O que pode ser constatado por vários outros textos.

O homem, progredindo a partir de um tipo único desde que saiu o limo fecundo, corroborava com a visão religioso-mitológica. Mesmo após a publicação de “A Origem das Espécies” de Charles Darwin em 1858, a maioria dos homens de ciência daquela época partilhava da visão religiosa tradicional sobre a procedência do homem e dos animais, apenas a proposta de um parentesco corporal lhes causava verdadeira repugnância.

Assim sendo, uma explicação alternativa descrevendo como o homem saiu do barro, utilizando um palavreado próximo às ideias que estavam surgindo naquele momento, atrairia a atenção, principalmente dos espíritas recém-saídos das religiões tradicionais, receptivos a uma criação especial do gênero humano.

Portanto, tendo em vista o que foi observado nos trechos retirados da obra de Roustaing relacionados ao assunto, se é levado a acolher a opinião dos diversos pensadores espíritas quanto à produção Roustainguista: Que os espíritos que ditaram esses  livros eram de uma falange ainda apegada ao dogmatismo bíblico, que copiaram a codificação Kardequiana e acrescentaram ideias próprias com o intuito de “catolicizar” o Espiritismo.

Jefferson Moura de Lemos

Referências:

[1] ROUSTAING, J.B. “Os Quatro Evangelhos” – vol. I. Rio de Janeiro-RJ, FEB. 8ª edição, 1994.

[2] Animais de corpo mole, moluscos.

(latim molluscus, moles).

* os grifos são nossos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário